O poeta Manuel Bandeira pôs o título de Carnaval em um dos seus primeiros livros, lançado lá no longínquo 1919. Começa com o poema Bacanal, em ritmo de festa e bebedeira:
Bacanal QUERO BEBER! Cantar asneiras No esto brutal das bebedeira Que tudo emborca e faz em caco... Evoé Baco! Lá se me parte a alma levada No torvelinho da mascarada, A gargalhar em doudo assomo... Evoé Momo! Lacem-na toda, multicores, As serpentinas dos amores, Cobras de lívidos venenos... Evoé Vênus! Se perguntarem: Que mais queres, Além de versos e mulheres?... — Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!... Evoé Baco! O alfange rútilo da lua, Por degolar a nuca nua Que me alucia e que eu não domo!... Evoé Momo A Lira eterna, a grande Lira!... Por que que eu extático desfira Em seu louvor versos obscenos, Evoé Vênus!
Porém, o que começa com festa e bebedeira, logo se transforma na sequência dos poemas em solidão, angústia, lágrimas e melancolia. O poeta não conseguiu cair na folia como desejava. Pierrots e arlequins sofridos e tristonhos invadem o salão poético. A última poesia do livro traz o clima de encerramento da festa:
POEMA DE UMA QUARTA-FEIRA DE CINZAS ENTRE A TURBA grosseira e fútil Um Pierrot doloroso passa. Veste-o uma túnica inconsútil Feita de sonho e de desgraça... O seu delírio manso agrupa Atrás dele os maus e os basbaques. Este o indigita, este outro o apupa... Indiferente a tais ataques, Nublada a vista em pranto inútil, Dolorosamente ele passa. Veste-o uma túnica inconsútil, Feita de sonho e de desgraca...
O próprio Bandeira reconhece que era outra a intenção do poeta ao tentar escrever o livro intitulado Carnaval. Assim como a túnica inconsútil que veste o Pierrot doloroso, as poesias acabaram feitas de sonho e de desgraça.
No epílogo do livro o autor confessa seu “fracasso”:
EPÍLOGO
EU QUIS UM DIA, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...
Quando o acabei, — a diferença que havia!
O se Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura...
— O meu carnaval sem nenhuma alegria!...
Manuel Bandeira é assim, melancólico, mas com humor embalando a própria tristeza. Um humor que não gargalha, mas ri de si mesmo e para dentro fazendo aquele barulhinho tsk tsk tsk.
Meus carnavais de velho têm sido assim, no estilo Bandeira de ser. Mas já foram diferentes, em que os versos mais apropriados poderiam ser os de Zé Keti e Pereira Matos:
Tanto riso
Ó, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando pelo amor da Colombina
No meio da multidão
Foi bom te ver outra vez
Está fazendo um ano
Foi no Carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrot
Que te abraçou
Que te beijou, meu amor
Na mesma máscara negra
Que esconde teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval
Como se vê, mais para marcha-rancho do que para samba-enredo. Ou poderia me valer de Chico e Tom, quase pedindo desculpas ao explicar que:
Minha música não é de levantar poeira
Mas pode entrar no barracão
Assim como Bandeira, também tentei poemas de carnaval. Não se transformaram em melancólicos versos, mas foi por pouco. Aqui vão duas dessas tentativas:
Anjo azul
Um anjo
azul
pousou em minha janela
ontem
só quando ele saiu
notei
a purpurina em minha cama
lembrei
era carnaval
Anjos
Calças de couro preto
Motocicletas aladas
Os anjos desceram à Terra
.
Muita festa, Carnaval
.
Era parte de um plano
Ele, sim Ele
Queria saber de tudo
.
Muita festa, Carnaval
Os anjos nunca voltaram
.
Muita festa, Carnaval
Seja com festa e bebedeira, com muito beijo na boca e brincadeira, ou com suave afastamento, à bordo de um livro, ou mesmo com a criativa e solitária melancolia, cada um na sua, o que achar melhor, desejo a todes um bom carnaval.
Talvez o ofício do poeta seja esse: ser aleatório e incomum o suficiente para atravessar o tempo sem se deixar limitar por ele.
Adorei a edição! Obrigada!