Magma
Fotografias em textos que captam emoções, sentimentos e desejos de uma viagem impressionista mágica
É um livro de texto, que se diz de contos, mas enquanto eu o lia, sentia-o como se folheasse um álbum de fotografias de viagem. Fotos de paisagens, sim, também, mas, mais que isso, fotos que mostram além daquilo que se vê. Mostram o que se sente, mostram emoções e desejos.
Escrevo aqui sobre o livro Magma, da autora Fernanda Mendonça (Editora Paraquedas). Nada sei sobre a autora além do que está escrito na apresentação dela dentro do próprio livro. Tão curta que posso transcrever aqui:
“Nascida em terras paulistas e criada em quintal pantaneiro, Fernanda Mendonça aprendeu a recortar o mundo pelo que cabia em seu olhar. Partiu da fotografia para a poesia e encontra, agora, na prosa poética sua forma de enquadrar as paisagens com as quais se confunde. Atua como médica, em cirurgia pediátrica e acupuntura, no Brasil, entre o mar e a montanha”.
Eis tudo o que eu sei dela. Mas é uma apresentação curta que já esclarece muito. Por exemplo, o fato dela ter se utilizado da fotografia e da poesia como meios de expressão artística antes desse livro em prosa poética.
Também o fato dela ter sido criada em quintal pantaneiro o que, para minha imaginação, já a coloca com um olhar poético próximo do saudoso Manoel de Barros. E não é à toa que digo isso pois a maneira como ela vê e descreve não se prende ao objeto ou à pessoa em si, mas ao que deles emana e a faze sentir e desejar. Na abertura do livro, uma epígrafe do próprio Manoel de Barros que corrobora minha impressão:
“Quero a palavra que sirva na boca de passarinhos”.
Vulcânica impressionista
A câmera de texto de Fernanda Mendonça captura emoções. Mas ela não é unicamente uma “escritora passarinha”, também é vulcânica. Foi a junção das duas que produziu Magma. Assim como a ave vulcânica, que usa as cinzas como incubadora de seus ovos, a autora se aproxima dos vulcões para ser poesia.
Do livro e suas causas primordiais e intenções pouco se sabe porque nada se diz. Deduz-se, por óbvio, que foi em viagem pela Ásia, graças aos locais e hábitos mencionados. E muitos vulcões. O porquê da viagem, quanto tempo durou, se foi em uma ou mais passagens, o leitor fica a imaginar.
Interessante, e não se sabe se os contos respeitam a cronologia da viagem, mas a poesia do livro vai crescendo à medida que as páginas são viradas. Como se o mergulho da viagem fosse trazendo mais encantamento, mais sentimentos, emoções e desejos que não são fáceis de traduzir friamente. Ou será que foi apenas a prática da escrita que fez aflorar mais a prosa poética? Afinal, escrever é também uma viagem. No caso, uma viagem impressionista, mais que realista (o que é o real no coração de uma poeta?). Pode ser ainda que seja o próprio leitor que, quanto mais mergulha, mais é envolto pela lava da escrita. Ou tudo junto.
Faço aqui um pequeno poema:
Magma é a rocha do coração da terra
antes (e depois) de ser lava.
Como se a lava fosse a fala do vulcão
e o magma fosse a palavra
antes (e depois) de ser dita.
A alegria da frustração
O livro se inicia com um conto que relata um presente que só surgiu graças a uma frustração. A autora (ou a personagem literária) tenta subir a encosta de um vulcão, mas a falta de preparo físico e o encantamento com o entorno de floresta que a fazia se atrasar a impediu que chegasse ao topo (“Ninguém pisa no topo depois das 14h30, não há garantias quando chega a hora mágica”). Ela foi obrigada a voltar antes de completar a “missão”.
Na descida, exausta, tem um encontro inesperado:
“À direita um rio, lugar que convida a encontros. É à beira dele que o som vai aumentando e, como uma aparição, um ser sobrenatural, ele surge. Lentamente, um veado se presentifica, envolto em uma aura suave, calma, equilibrada. Olha para ela e lhe confere alguma força...”
O encontro que ela não procurou, aconteceu. É a mágica da viagem, ou a viagem mágica. E ela continua:
“É incontável o tempo do sonho. Ela não sabia dizer quanto durou aquele olhar.
Quando chegou à sua frente, sustentaram um encarar amoroso, acolheram suas essências e seguiram juntos pelo leito do rio. Ele desvia e adentra as árvores. Aos poucos foi se cobrindo de mata, até voltar a ser floresta.
(ela) Não pode seguir. Sentou, chorou. O que passou ali foram vidas, não minutos.”
Esse é só um exemplo da prosa poética de Fernanda Mendonça, que deixo aqui como uma amostra grátis para você se interessar pelo livro. Uma obra cheia de encontros mágicos que, como toda mágica, é envolta em mistério e encantamento.
Cada conto, uma fotografia do momento. Como escrevi no início, os retratos capturam mais a emoção, o sentimento, o desejo do que a simples descrição de paisagens e personagens. E assim nos levam em sua viagem íntima, impressionista, magma antes da explosão da lava.
Assim como faz em sua profissão de médica cirurgiã, Fernanda Mendonça, com sua palavra pássaro, abre e costura, expõe e esconde, trata e cura, não mais o corpo, mas a alma.
Um outro Magma
Aqui corro o risco de ser mal interpretado. Esclareço que não quero fazer comparações, apenas citar e lembrar de um outro livro também chamado Magma e feito por um escritor também médico: João Guimarães Rosa. O Magma dele ganhou um prêmio da Academia Brasileira de Letras em 1936, mas só foi publicado décadas depois, em 1997 (com capa do Poty), após a morte do autor.
Rosa não desprezava o livro, mas também não o exaltava e, talvez por isso, não quis publicá-lo, assim como também nunca mais publicou poemas (abro parênteses para lembrar que a prosa dele é poética, muito poética). Só dez anos depois do prêmio é que surgiu o primeiro livro publicado dele: Sagarana (1946).
No discurso de agradecimento pelo prêmio, na própria Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa fala sobre Magma:
“A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera: relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tateia formas novas para exteriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento.
...
O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do seu desamor e se fez criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a respeitar.”
E, para finalizar este textão, um dos poemas do livro Magma, que o exigente Rosa não achou bom o suficiente para publicar:
Sono das Águas
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...
.
Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...
Desejo boas viagens, mesmo que sejam para dentro de vocês mesmos