Cada poesia são várias. Como saber o que exatamente o escritor quis dizer quando se lê uma poesia? Cada verso, muitas interpretações. Por experiência própria, nem mesmo o poeta consegue saber ao certo o que quis dizer. Muitas vezes o inconsciente fala mais alto e se impõe sobre o racional. Por outro lado, nem sempre o poeta transfere para os versos aquilo que inicialmente pensou da forma com que iria escrever. Pode ser um fracasso, mas também uma conquista pois o racional, por vezes, também vence e melhora o que seria apenas emocional. Ou pode ser que o inconsciente salve a poesia. Há muita indeterminação neste ofício.
Carlos Drummond de Andrade brincou com uma pedra em seu caminho e a transformou em uma poesia que quebrou a janela e se impôs junto aos clássicos da poesia brasileira. Quando o poema foi publicado, primeiro na Revista de Antropofagia, em 1928 e depois no livro de estreia de Drummond, o Alguma Poesia, em 1930, muitas pedras foram atiradas ao autor. O poeta achou as críticas tão interessantes que ele mesmo as coletou e com elas publicou um livro, chamado “Uma pedra no meio do caminho — Biografia de um poema”, em 1967, e depois complementado em “Ainda a pedra”, na edição do Instituto Moreira Sales, com textos e ilustrações que sairiam depois de 1967.
Despois de escrito e publicado, o livro — o poema, o conto etc. — pertence tanto ao autor quanto ao leitor. O autor não pode ser responsabilizado pelas interpretações que possam abalroar sua obra. Também não sei se lhe é permitido censurar essas interpretações. Quando muito pode se esforçar para contestar certas leituras esdrúxulas, mas não sei se terá muito sucesso.
Faço todo esse preâmbulo, mais longo do que imaginava quando comecei, para falar de um poema de Cecília Meireles, escritora cujo aniversário de 60 anos de morte se deu no final do ano passado. Um ano antes de morrer, portanto em 1963, ela lançou sua Antologia poética, para a qual, ela começa assim o breve texto de abertura:
“Há muita maneira de fazer-se uma antologia e não se sabe qual seja a melhor. Pode-se usar um critério estético, ou didático, ou outros, conforme o objetivo que se tenha em vista. Para o leitor, a melhor antologia é a que ele mesmo organiza, ao eleger, na obra completa de um escritor, aquilo que mais lhe agrada, embora, com o passar do tempo, se possa ver como o gosto pessoal varia, e o que nos agrada em época já não nos agrada igualmente noutra, tão volúveis somos em nossas preferências e tão diferentes são as perspectivas, no caminho da nossa evolução.”
Agora quero me ater a um só poema do livro — minha edição é a da Editora Global, 3ª edição, de 2013, emprestada da Biblioteca Pública do Paraná — que fala, segundo a minha interpretação, do ofício de escrever, mais especificamente sobre escrever poesia, embora também possa servir para a prosa. Ao contrário de outros ofícios, trabalhar com a palavra, principalmente com a apalavra poética, traz o perigo da imprecisão, como vimos acima. Ou, se preferir, o texto se abre a várias interpretações que dependem da formação social, cultural, econômica, religiosa e de caráter de cada pessoa que o consome.
Para mim, o poema “Destino”, publicado por Cecília Meireles no livro Viagem, em 1939, quando ela tinha 38 anos, traz bem esta dúvida sobre a precisão — ou a falta dela — do ofício poético. Não é à toa que no primeiro verso ela se diz “pastora de nuvens”, que é uma ótima descrição para uma poeta.
Agora chega de papo e vamos à poesia, que é mais importante. Depois, se quiserem podem escrever mais nos comentários:
Destino
Pastora de nuvens, fui posta a serviço
por uma campina tão desamparada
que não principia nem também termina
e onde nunca é noite e nunca madrugada.
(Pastores da terra, vós tendes sossego,
que olhais para o sol e encontrais direção.
Sabeis quando é tarde, sabeis quando é cedo.
Eu, não.)
Pastora de nuvens, por muito que espere,
não há quem me explique meu vário rebanho.
Perdida atrás dele na planície aérea,
não sei se o conduzo, não sei se o acompanho.
(Pastores da terra, que saltais abismos,
nunca entendereis minha condição.
Pensais que há firmezas, pensais que há limites.
Eu, não.)
Pastora de nuvens, cada luz colore
meu canto e meu gado de tintas diversas.
Por todos os lados o vento revolve
os velos instáveis das reses dispersas.
(Pastores da terra, de certeiros olhos,
como é tão serena a vossa ocupação!
Tendes sempre o indício da sombra que foge...
Eu, não.)
Pastora de nuvens, não paro nem durmo
neste móvel prado, sem noite e sem dia.
Estrelas e luas que jorram, deslumbram
o gado inconstante que se me extravia.
(Pastores da terra, debaixo das folhas
que entornam frescura num plácido chão,
sabeis onde pousam ternuras e sonhos.
Eu, não.)
Pastora de nuvens, esqueceu-me o rosto
do dono das reses, do dono do prado.
E às vezes parece que dizem meu nome,
que me andam seguindo, não sei por que lado.
(Pastores da terra, que vedes pessoas
sem serem apenas imaginação,
podeis encontrar-vos, falar tanta coisa!
Eu, não.)
Pastora de nuvens, com a face deserta,
sigo atrás de formas com feitios falsos,
queimando vigílias na planície eterna
que gira debaixo de meus pés descalços.
(Pastores da terra, tereis um salário,
E andará por bailes vosso coração.
Dormireis um dia como pedras suaves.
Eu, não.)
-Muito obrigado, Cecília, por pastorear as nuvens com tamanha destreza e encanto.